Existe Certo e Errado
"O primeiro princípio é que você não deve enganar a si mesmo — e você é a pessoa mais fácil de enganar."
— Richard Feynman
Este é o terceiro e último post de uma série sobre o problema do consenso. No primeiro, exploramos como a confiança desmoronou quando as instituições quebraram os mecanismos que mantinham as mentiras sob controle.
No segundo, examinamos como a verdade emerge através da satisfação de restrições — múltiplas perspectivas eliminando possibilidades falsas até restar o consenso.
Agora vamos ao coração do problema: podemos concordar sobre o que é certo?
Paradoxo Auto-explicativo
"Não existe certo ou errado."
Você já ouviu isso antes. Talvez de um estudante de psicologia num churrasco, talvez de alguém justificando algum comportamento questionável, talvez da sua própria boca quando as coisas ficaram complicadas.
Soa sofisticado, como se estivessemos transcendendo as noções primitivas de bem e mal. Tá, mas a afirmação em si tá certa ou tá errada?
Se estiver certa, então EXISTE um certo — o que torna a afirmação errada. Se estiver errada, então EXISTE certo e errado — o que também a torna errada. Se não estiver nem certa nem errada, então a afirmação nem faz sentido.
É o paradoxo do mentiroso ("esta frase é falsa") com diploma e toga,
Mas talvez você ainda discorde. Talvez certo e errado pareçam absolutos demais, moralistas demais. Justo, vamos mudar para algo mais mensurável: existe melhor e pior?
Podemos pelo menos concordar que sobreviver é melhor que morrer? Que eficiência é melhor que desperdício? Que resistência é melhor que fragilidade quando se trata de construir pontes?
Porque se conseguimos concordar sobre melhor e pior, então melhor deveria ser mais certo e menos errado. Certo?
A Natureza Já Votou
Enquanto discutimos, abelhas constroem colmeias com hexágonos.
Não quadrados, não triangulos, não circulos. Hexágonos. Cada colmeia, cada abelha, por milhões de anos.
As abelhas tentaram outras formas: ancestrais das abelhas construíram com geometrias diferentes, algumas espécies tentaram células circulares ou padrões irregulares.
E estão quase todas extintas, as que fazem hexágonos sobreviveram. (Algumas abelhas sem ferrão persistem com colmeias circulares na abundância tropical — gastando mais cera para menos mel.)
Por que hexágonos? Porque resolvem o problema de otimização da natureza: armazenamento máximo, material mínimo, encaixe perfeito sem espaços vazios. Quadrados desperdiçam cera nos cantos, círculos não encaixam sem deixar buracos.
As construtoras de hexágonos gastavam menos energia, guardavam mais mel, sobreviviam a mais invernos, enquanto as outras morriam.
Hexágonos aparecem em todo lugar onde a física precisa otimizar.
Casco de tartaruga — placas hexagonais dão proteção máxima com flexibilidade. Lava resfriando racha em colunas hexagonais porque é assim que a tensão se libera com energia mínima.
Sua própria córnea usa células hexagonais porque qualquer outro padrão borraria sua visão. Até no nível atômico, o material mais resistente conhecido pela ciência é literalmente carbono em padrões hexagonais: grafeno.
Quando a natureza precisa de eficiência, aparentemente EXISTE uma solução certa.
Verdade Incompleta
Então por que "não existe certo ou errado" ressoa tanto?
Porque estamos reconhecendo algo real: não existem certo e errado estáticos. Eles mudam com contexto e tempo, o que funciona pra um não funciona pra outro.
Comer gordura de foca crua é certo no Ártico — fornece nutrientes essenciais num ambiente sem vegetais. Mas ia te matar nos trópicos onde frutras são abundantes e carne crua carrega parasitas.
Ter oito filhos era certo para fazendeiros medievais que enfrentavam 50% de mortalidade infantil e precisavam de mão de obra, mas a mesma escolha na Tóquio moderna seria insustentável.
O acadêmico vê essa variação e conclui que não existe certo ou errado. Mas isso é como dizer que, já que a água ferve em temperaturas diferentes em altitudes diferentes, não existe ferver.
Certo e errado são reais, só que dependem de restrições. Dadas restrições específicas, algumas respostas funcionam e outras não. A realidade separa o certo do errado através da seleção.
"Realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece."
— Philip K. Dick
A Matemática da Moralidade
Até agora estávamos no reino da física — hexágonos, eficiência, sobrevivência. Vencedores e perdedores. Mas e quanto à ética? Confiança, cooperação, traição? Certamente essas são complexas demais, humanas demais, cinzentas demais pra uma respostas simples?
Era o que todos pensavam até 1980.
Robert Axelrod queria saber: existe uma forma matematicamente ótima de lidar com confiança? Quando você deve cooperar? Quando deve trair? Quando deve perdoar?
Axelrod organizou um torneio computacional baseado no Dilema do Prisioneiro — o enigma mais famoso da teoria dos jogos sobre por que cooperação é difícil.
Dois jogadores escolhem: cooperar ou trair. Se ambos cooperam, ambos ganham um pouco. Se ambos traem, ambos perdem um pouco. Mas se um trai enquanto o outro coopera, o traidor ganha muito enquanto o cooperador perde tudo.
O malandro sempre ganha do otário, certo?
Ele convidou programadores para enviar algoritmos que competiriam entre si, mas a escolha seria repetida por 200 rodadas em vez de apenas uma. Havia estratégias super avançadas, analisando padrões tentando prever quando o oponente cooperaria ou trairia, calculando probabilidades, modelando a psicologia humana.
A estratégia que ganhou era tão simples que chega a ser ofensiva: Coopere na primeira rodada. Se cooperarem de volta, continue cooperando. Se te traírem, traia na próxima. Olho por olho.
Ganhou não, amassou o torneio.
Axelrod ficou chocado. Refez o torneio, com todos os dados agora publicados. Certamente agora alguém venceria essa estratégia ridiculamente simples? Olho por olho levou de novo.
(Recomendo muito a explicação do Veritasium sobre isso, e como generosidade e perdão entram na conta.)
A matemática é inegável: em qualquer sistema com interação repetida, cooperação recíproca vence puro egoísmo. Não porque cooperação é boazinha, mas porque traidores envenenam seu próprio ambiente enquanto cooperadores criam condições para prosperidade mútua.
O Algoritmo Universal
Aí tem algo esquisito: toda cultura que sobreviveu tempo suficiente para escrever coisas escreveu a mesma regra. Não uma parecida, literalmente a mesma regra.
Chamamos de "Regra de Ouro" hoje, mas culturas sem nenhum contato — separadas por oceanos e milhares de anos — todas descobriram estratégias idênticas para a cooperação e sociedade:
Cristianismo: "Fazei aos outros o que quereis que vos façam."
Confúcio: "Não imponha aos outros o que não deseja para si."
Judaísmo: "O que é odioso para você, não faça ao próximo."
Hinduísmo: "Esta é a suma do dharma: não faça aos outros o que causaria dor se feito a você."
Budismo: "Não machuque outros de formas que você acharia dolorosas."
Islã: "Nenhum de vocês verdadeiramente crê até desejar para seu irmão o que deseja para si."
Iorubá: "Quem vai pegar um pau pontudo para cutucar um filhote de pássaro deve primeiro tentar em si mesmo."
Nativos Americanos: "Todas as coisas são nossos parentes; quando você machuca algo, machuca a si mesmo."
Egito Antigo: "Faça por alguém que pode fazer por você, para que ele assim também faça."
Essa convergência é pressão seletiva: a força evolutiva mais pesada que impulsionou a inteligência humana foi a detecção de mentiras. Nossos ancestrais que não conseguiam identificar mentiroso eram enganados e morriam.
Literalmente evoluímos cérebros gigantes para rodar software de reputação. Cada interação social, nossa cabeça automaticamente registra: Cumpriram o prometido? As ações bateram com as palavras? Posso confiar na próxima?
As culturas que erraram não estão aqui para contar suas histórias. Sociedades que matavam todo estranho nunca aprenderam metalurgia ou agricultura dos vizinhos — estagnaram e foram conquistadas.
Sociedades que nunca retaliavam eram exploradas até a extinção. Sociedades que nunca perdoavam se despedaçavam em vinganças acumuladas.
O que sobreviveu? O equilíbrio preciso do torneio do Axelrod: A Regra de Ouro é literalmente olho por olho traduzido em linguagem, com perdão como correção de erro para o ruído na interação humana.
Pensa na lógica: se todos seguem "trate os outros como gostaria de ser tratado", cooperação emerge sem imposição central. Traidores enfrentam traição recíproca imediata, mas o sistema pode se recuperar de erros através do perdão. É antifrágil — fica mais forte através da iteração.
A universalidade é impressionante, do mesmo jeito que olhos evoluíram de forma independente mais de quarenta vezes. A física restringe o que funciona.
O Problema do Consenso
Através desta série, construímos um vocabulário sólido para entender como o consenso emerge:
Verdade é o que sobrevive à satisfação de todas as restrições contra a realidade. Múltiplas perspectivas eliminam possibilidades falsas até restarem apenas descrições precisas. Não eterna, não absoluta, mas confiável o suficiente para semáforos funcionarem para todos.
Confiança é o mecanismo de coordenação que nos permite dividir o trabalho de verificação. Em vez de confirmar tudo pessoalmente, confiamos em relatos que convergem. Confiança escala verdade para além da experiência individual.
Certo é o que persiste dadas restrições específicas. Hexágonos são certos para colmeias. Cooperação é certa para interação repetida. Dependente de contexto mas não é arbitrário e sim determinado pelo que sobrevive à pressão seletiva.
Melhor é movimento em direção a configurações mais persistentes. Não perfeito, não ótimo em cada momento, mas mais provável de sobreviver com o tempo. Evolução não encontra a melhor solução, apenas melhor que as alternativas.
Esses termos se interconectam: Verdade permite confiança, que permite cooperação. Cooperação é melhor em jogos iterativos, melhor é certo porque persiste e certo se torna verdade através da demonstração.
Problema resolvido, né? Se a solução é tão simples e todo mundo já sabe ou vai convergir para ela, nada com que se preocupar, certo?
Bom, aí que tá: funciona através da extinção. Hexágonos não venceram o voto democrático das abelhas. Venceram porque todo outro padrão lentamente morreu ao longo de milhões de ciclos.
A Regra de Ouro não está se espalhando através de algum acordo místico. São grupos que a entendem melhor sobrevivendo mais que grupos que não entendem. A crise de confiança que discutimos não é um problema, é a solução em operação.
O Caso Egoísta para o Altruísmo
"Devemos ser enforcados todos juntos, ou certamente todos seremos enforcados separados."
—Benjamin Franklin
Nossos sistemas construídos sobre mentiras já estão se destruindo e não há sociedade para salvar. São apenas pessoas até o fundo — oito bilhões de indivíduos fazendo escolhas individuais que se agregam no que chamamos de civilização.
A realidade matemática é simples: mentiras são caras. Cada crença falsa piora suas previsões, e cada verdade não verificada aumenta o risco de colapso sistêmico.
Não podemos resolver esta crise de confiança ou consertar esses sistemas quebrados num post de blog. O que percebi escrevendo esta série é que a seleção já está acontecendo.
Então esqueça consertar a sociedade: como sobrevivemos ao que está vindo?
E podemos simplesmente voltar os passos: a resposta certa para sobrevivência é cooperação, cooperação requer confiança, confiança requer verdade, verdade requer verificação.
Quebramos a corrente no primeiro elo, paramos de questionar e verificar.
Não tem salvação chegando, nenhuma atualização de algoritmo, regulação ou tecnologia vai restaurar confiança sem que se mude o comportamento. Não escrevi três posts para chegar a conclusão, é só que os grupos que não seguiram essas regras estão notavelmente ausentes da conversa.
No fim é só matemática: cooperação vence traição em jogos repetidos. Verdade vence mentiras quando as consequências se acumulam.
As abelhas aprenderam, talvez a gente aprenda também.
Obrigado pela leitura!